Gilets Jaunes 3
20h, 07/12/2018
Mercado de Natal
Praça de Tourny, Bordeaux, França.

Aproveito a noite comendo um sensacional prato de Aligot (uma espécie de purê de batata com queijo derretido que se come no inverno) com linguiça e bebo meu vinho quente, típico no Natal, para esquentar o frio. Ao meu lado minha esposa e sua amiga francesa, Christelle, que veio conhecer a famosa e – muito em voga – cidade de Bordeaux.

O Mercado de Natal é extenso, com suas barraquinhas de madeiras, todas idênticas em 4 filas, decoradas para o natal… as pessoas vão caminhando tranquilamente como quem ainda está procurando o que comprar para os presentes que faltam…

Em contraste a esta tranquilidade do Mercado de Natal de Tourny, um helicóptero sobrevoa a região. A chuva começa a cair. Resolvemos dar uma volta rápida para que Christelle veja a decoração da Cours de L’Intendance, a “quinta avenida” de Bordeaux, antes de voltarmos para a casa.

A 200m dali, ao dobrar a esquina, uma fogueira inflamava bem em frente ao Grand Hôtel de Bordeaux, o principal hotel 5 estrelas da cidade. Eram os casseurs, os Black Blocs versão francesa.

Policiais faziam uma barreira humana a sua frente.

A gente sabia que haveria manifestação na cidade. Demos meia volta para fugir da confusão.

Acompanhando pela TV, meus pais e amigos nos mandam mensagem com preocupação. A TV mostrava que a manifestação em Bordeaux é uma das mais quentes da França naquele final de semana.

Logo em Bordeaux, uma das cidades grandes mais pacatas do país.

“Não costuma acontecer nada assim por aqui, o que está havendo dessa vez?”

A verdade é que as confusões em geral acontecem mais em Paris, Lyon, Marseille, Lille e por aí vai…

Para o resto do mundo, inclusive, tudo o que ocorre em Paris tem um holofote muito maior do que em outras cidades.

Se em Paris for tudo bem, não haverá notícias internacionais. Se quebrarem tudo “a França está em caos!”

Não é verdade. Para quem mora na França, ou ao menos conhece razoavelmente bem, sabe que é como se Paris fosse um país diferente. Tudo é diferente, tudo é mais intenso.

Quem se lembra dos mortos nos atentados de Nice há não muito tempo? E nos de Munique? Até mesmo nos de Londres?

Todos mais ou menos na mesma época.

Mas quando algo ocorre em Paris, o mundo inteiro vira “Charlie”.

Quem se hospeda na beira do Sena, e passa quinze dias visitando igrejas e museus pode ter dificuldade em entender o que Paris representa de verdade.

É fácil acreditar que Paris seja uma bela cidade-cenário parada no tempo.

Só que existe todo um mundo real ao seu entorno.

A região parisiense tem o maior PIB da Europa continental, são mais de 10 milhões de habitantes, numa economia maior que todo o PIB anual da Argentina.

Rio, São Paulo, Manaus, Belém, Florianópolis… some o que se produz em todas essas cidades juntas!

Paris é maior.

Como Londres, ocupa a terceira posição como maior economia ocidental.

Não parece tanto de dentro do Batêau Mouche…

Mas por debaixo da terra, linhas de metrô, RER e trens que ligam absolutamente tudo num sistema de transporte complexo – levando essas milhões de pessoas de um canto a outro…

Cantos nem sempre charmosos, nem sempre antigos.

É ali que as coisas acontecem…

FRANÇA SOCIALISTA?

Houve um tempo não muito distante em que todos os problemas da vida de um brasileiro era culpa da falta do Estado. A maioria acreditava que o Governo deveria fornecer saúde, educação, aposentadoria e… até a culpa do seu salário não ser o valor que você achava que seria justo era… do governo!

Hoje, o mainstream mudou… e os brasileiros agora acham que todos os problemas de suas vidas se deve ao excesso de Estado e que privatizar reduziria preços, custos, etc… e melhoraria a vida de todos os brasileiros.

Antes, qualquer Estado menor era “acusado” de neoliberal”, direitista (termo que até ontem era usado como um ofensa) etc.

Hoje, qualquer viés verdadeiramente liberal – que não se reduza a apenas “liberal na economia” – e com intervenção estatal é socialismo, comunismo, etc…

Vive-se em um mundo binomial: ou você é 100% Bolsonaro ou 100% Lula. Ou, 100% “isentão”. Não há espaço para meio-termos.

Nesse contexto, temas como ecologia e redução da desigualdade de renda viraram temas da esquerda. E apenas dela.

Então, para quem vê do Brasil, a França é realmente socialista, do ponto de vista “liberal nos costumes” (sic). Aqui, o aborto é legalizado, é possível união entre pessoas do mesmo sexo e imigrantes ocupam o mesmo espaço social que os nativos.

Além disso, um dos orgulhos do povo é saber que todos têm direito a um teto e a comida. O Governo ajuda fortemente a quem mais precisa.

Mas as coisas são bem diferentes do que os brasileiros pintam…

A França é um país capitalista para caralh@!

Basta dar um pulinho em Biarritz, Saint-Tropez ou Monaco para se ter uma ideia. Aquele hotel que eu trabalhava, por exemplo, é luxo extremo. Um jantar no tal “Pressoir d’Argent” não sai por menos de R$ 5 mil. E a maior parte dos que frequentam são locais.

Na rua Saint-Catherine, milhares de pessoas com bolsas de compras na mão, os restaurantes, não importa o dia da semana, todos lotados. Detalhe: não são baratos. Para um economista atento, é sinal de atividade econômica bombando.

E é verdade. A economia está se recuperando em toda a Europa: foi o melhor ano desde 2008. Trump é hábil nas redes sociais em trazer para si os méritos do crescimento americano, mas no último ano, a economia europeia cresceu mais que a americana: Europe’s economy grew faster than the U.S. last year

O desemprego têm caído constantemente. Na Alemanha também “socialista”, inclusive, o desemprego é menor que nos EUA.

No caso específico da França, um dos temas de debate nas eleições presidenciais americanas foi “por que era mais difícil abrir uma empresa nos EUA do que no Canadá ou na França”, 2 países considerados hoje como “socialistas”:  

Clinton: ‘It Shouldn’t Be Harder to Start a Business in America Than Canada or France’ 

Também vale ressaltar, como já fiz antes aqui, que a produtividade de um trabalhador francês é quase 20% maior do que a de um equivalente britânico e ainda 50% maior do que a de um trabalhador japonês.

É muita diferença!

A maior parte dos países europeus do norte são economias abertas e competitivas apesar da forte presença do Estado em todos eles.

Há um estímulo forte à competitividade e ao empreendedorismo. São eles quem fazem a economia girar e crescer. Sem eles, não há Estado Assistencialista que se sustente. Eles entendem isso: o empresário é aliado e não inimigo.

AS LEIS TRABALHISTAS PROTEGEM EXAGERADAMENTE O TRABALHADOR?

Depende muito. Em primeiro lugar, deve-se fazer uma distinção entre o trabalhador comum e o cadre, que seria o equivalente ao “cargo de confiança” brasileiro.

Aqui, mais do que no Brasil, qualquer trabalhador mais sênior já é considerado cadre. E ele não tem hora nem para entrar e nem para sair: ele tem é que entregar.

Minha esposa é cadre e trabalha mais de 14 horas por dia, não ganha um puto a mais por isso. Não tem sábado, nem domingo e nem feriado.

Eu não era e, exceto nos fechamentos do mês da empresa, cumpria meu horário certinho. Eram 39 horas de trabalho e qualquer hora a mais eu receberia hora extra que obviamente ninguém quer pagar.

Tinha 25 dias úteis de férias ao ano, 3 a mais que no Brasil.

Se ao considerar a diferença de produtividade entre os países, concluímos que o Brasil tem regras de países com a produtividade alta. Só que o brasileiro em média precisa de 4 horas para fazer o que um francês faz em apenas uma.

Aqui o 13º não é obrigatório e não existe 1/3 adicional de férias. Também não há FGTS.

A legislação trabalhista é mais flexível e de comum acordo entre empregado e empregador. No meu primeiro ano de trabalho, por exemplo, o único feriado ao qual eu tinha direito era o 1º de maio. O restante, se quisesse folgar ou seria descontado do salário ou das férias.

Bem, o combinado não sai caro, não é mesmo?

Quanto aos feriados: serão 11 no total na França, sendo que pela lei, as empresas tem direito de abrir sem nenhum custo adicional em um deles: ou seja, no total são 10 de fato gozados.

No Rio, serão 13. E lá se vão os 3 dias a mais de férias que se tem aqui. Logo, não é cabível o comentário do ex-prefeito Eduardo Paes ao jornalista francês.

Neste quesito, é difícil comparar com os EUA já que cada Estado americano tem sua própria legislação, mas se pegarmos algo de alcance nacional como a Bolsa de NY, ela terá 9 feriadosA B3 de São Paulo terá 13A Bolsa de Paris, terá 6..

Acho que a questão fundamental nesse aspecto é mais cultural. Aqui ninguém vai te valorizar apenas por ficar muitas horas no trabalho.

Pelo contrário, se não for para entregar mais que o esperado ou do que os colegas, você pode ser visto como “enrolado”. Todos trabalham a fundo durante o expediente, é foco. Hora de trabalho é para trabalhar, hora de sair é de sair. Não tem Whats App, Globo.com e nem atender um telefone pessoal no horário de trabalho.

Bem, tire suas próprias conclusões. A ideia não é defender e nem criticar, mas trazer elementos que ultrapassem aquele esteriótipo que reduz o mundo e sua complexidade. Não gosto dessa visão “binomial” das coisas.

E O QUE É ESSA MANIFESTAÇÃO?

Bom, para os brasileiros é relativamente fácil entender porque ela é bem próxima ao que aconteceu em 2013 no Brasil. Começa pelo aumento no custo dos transportes, depois vira tudo e qualquer coisa.

Na França, o estopim foi um imposto verde sobre o Diesel. A motivação é ambiental, mas a população não aprovou.

Embora as cidades grandes, em geral, tenham excelentes sistemas de transporte, as pessoas que vivem nas de menor porte precisam se locomover de carro. Eu mesmo passei 6 meses na região de Biarritz (balneário do Sudoeste/fronteira com a Espanha) e não tem nada a ver com Bordeaux ou Paris.

Neste aspecto, se parece muito mais com a Barra da Tijuca: tudo só se faz de carro. 100% da população é motorizada! A cidade nasceu e se estruturou assim. Essas pessoas não têm metrô na porta de casa.

A este problema se soma a diversos outros já que a população não estava contente com o novo Governo.

EMMANUEL “LACRON”?

No Brasil de hoje, absolutamente tudo que não seja Trump, Bolsonaro e Netanyahu é “de esquerda”.

Como no filme “Uma Mente Brilhante” da história de J. Nash, que via a ameaça comunista em tudo, assim estão os brasileiros de hoje: esquerdofrênicos.

E é com esses óculos reacionários que os brasileiros hoje veem o mundo.

É curioso como quando qualquer jornal internacional noticia o que acontece no Brasil, os leitores correm para alertar “eles não sabem do que falam” e “eles não vivem aqui” etc.

Mas quando é a imprensa brasileira que narra o que acontece lá fora…

Num mundo em que FHC virou comunista e o Partido Novo virou de esquerda, é claro que Emmanuel Macron pareça um revolucionário bolchevique.

Mas a verdade é que Macron era banqueiro e assumiu a França visando desregulamentar, organizar, simplificar e reduzir os gastos e a carga tributária do país. A ideia é modernizar a máquina e aumentar ainda mais a produtividade do país.

Logo que entrou, ampliou a reforma trabalhista e praticamente extinguiu o Imposto sobre Fortunas, criado nos anos 80 por Miterrand, e que sempre gerou grande polêmica sobre sua eficácia.

Não há nada de esquerda nisso. Ou ao menos nada que se assemelhe à esquerda latino-americana bolivariana.

AS ELEIÇÕES

Vivemos um tempo de 5 anos de governo socialista de François Hollande, que assumiu o país nos pedidos de mudanças frente a Crise de 2008. Mesmo nestes 5 anos, a França (assim como o Reino Unido, e principalmente a Alemanha) não sucumbiu e o déficit francês foi controlado.

É preciso atenção constante, mas medidas impopulares foram tomadas, cortaram-se gastos e subiram impostos. As contas francesas se mantiveram equilibradas mesmo num governo socialista – bem diferente do prejuízo deixado pelos governos PT no Brasil.

Antes dele, a França passou por 3 mandatos de presidentes de direita: 1 de Nicolas Sarkozy e 2 de Jacques Chirac.

Aliás, as eleições de 2017 tinham tudo para ser a volta da direita. Nas prévias do partido de direita, o popular prefeito de Bordeaux, Alain Juppé acabou perdendo para Fraçois Fillon, que começava a campanha como um dos favoritos.

Diversos ataques e denúncias acabaram minando a candidatura de Fillon nas vésperas das eleições.

Só para entender melhor o espectro político francês. Ele tradicionalmente se organiza em 4 grandes frentes: hoje, os 2 maiores partidos são os da direita (Républicains/UMP) e da esquerda (Parti Socialiste), ou seja, o de Sarkozy e Fillon e o segundo, de Hollande.

Fora estes, 2 partidos considerados extremistas, a extrema esquerda de Jean Luc Melanchon e a extrema direita de Marine Le Pen.

O pesadelo francês era que com as denúncias do principal candidato, Fillon, somada à baixa popularidade do Governo Socialista de Hollande, o segundo turno fosse entre os 2 candidatos populistas e extremistas.

O que os populistas têm em comum é a nomeação de um inimigo em comum, capaz de carregar sozinho o fardo de todos os problemas que ocorrem na vida pessoal dos cidadãos de um país. Para a extrema esquerda, esse inimigo geralmente é a elite, os ricos. Para a extrema direita, são os imigrantes.

Paralelo a isso, Macron que chegou a compor parte do Governo de Direita, se desliga e funda o próprio partido: o “Mouvement en marche”, um partido de Centro, novo, desafiando o status quo político do país.

A derrota de Fillon, praticamente, deixa Macron na cara do gol: ou era ele ou os extremos.

A FRANÇA DIZ UM SONORO NÃO AO POPULISMO (?)

A vitória de Macron é noticiada com otimismo pelo mundo. Após diversas vitórias de discursos rasos e populistas em diversos países, a França não sucumbiu…

Só que… ~ Era verdade esse bilete ~ ?

Melanchon e Le Pen não se calaram e a oposição ao governo Macron ecoou. É rotina um dos dois acusando erros ao Governo Macron, que ficou conhecido pelas camadas populares como “o presidente dos ricos”.

Os extremistas não são a maioria.

Mas também não precisam ser.

O extremo é barulhento. Enquanto os moderados se calam e criticam do sofá da sala de sua casa após um dia exaustivo de trabalho, o radical pega em bandeiras e vai às ruas certo de que sua luta é para salvar toda a humanidade.

Em qualquer lugar do mundo é assim.

Foi assim em Ferguson, nos EUA, no Brasil em 2013, neste exato momento na Hungria, e também em Bordeaux.

Mas amigo, quando acontece em Paris…

E no final, o que essas manifestações mostram é que em 2017, talvez a França não tenha realmente vencido o populismo.

Ele está bem vivo…

e em todo lugar.

Até a próxima!!

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